As crianças, os pais, a
educação e a falácia do “deixar fazer o que quiser”
Renata Penna
Poucas
coisas parecem ter caminhado tão pouco, e tão preguiçosamente, quanto a
educação, e o olhar da sociedade sobre as crianças, suas necessidades e
direitos. Não é raro ouvir de pessoas supostamente esclarecidas discursos como
“criança precisa de disciplina, precisa saber quem é que manda”, “criança
precisa aprender a obedecer”, ou “os pais modernos acham que não tem que
educar, tem que deixar a criança fazer tudo o que quiser, do jeito que quiser,
na hora que quiser”. Quantos equívocos!
Nos
últimos anos, até por força do início da vida escolar das minhas filhas,
envolvi-me um bocado com debates a respeito da educação formal, do papel dos
pais e dos professores na formação da criança, das questões de autoridade,
hierarquia, autonomia, disciplina, liberdade e aprendizado. Temas fascinantes,
que não pretendo esgotar nesse texto, nem poderia. Mas arrisco-me a pincelar
algumas reflexões.
Começo
dizendo que, da forma como entendo, educar uma criança para a liberdade e a
autonomia, respeitando seus tempos e necessidades e concedendo-lhe voz e
direito de se manifestar tanto na concordância quanto na discordância, não tem
absolutamente nada a ver com “deixar fazer o que quer”. Tem a ver com dispensar
as hierarquizações desnecessárias, abrir mão da muleta da autoridade vazia, não
dar carteirada, não lançar mão do discurso oco do “eu mando e você
obedece”. Tem a ver com abrir-se para ouvir o que a criança tem a dizer,
olhá-la com respeito, permitir-lhe a responsabilidade de decidir coisas com as
quais já pode arcar, compreendê-la como um ser humano inteiro, com direito
de manifestar-se, de reivindicar o que lhe parece importante, de ir contra o
que não compreende, de exigir que lhe expliquem e desejar compreender o que lhe
é dito.
“As
crianças de hoje não sabem mais obedecer”, dizem os críticos das novas formas
de encarar a educação das crianças. Bem, será que isso é ruim? Estamos vendo
nascer uma geração de crianças que não obedecem mais, assim simplesmente, por
obedecer, ao ouvir a voz de comando. Eles querem compreender porque é que devem
seguir uma orientação, querem opinar a respeito, querem ajudar a construir as
regras, querem participar das decisões. Com isso, estamos vendo nascer uma
geração que talvez saiba se responsabilizar melhor pelas escolhas feitas, por delas
haver participado, do que a anterior, que sabia obedecer muito bem, mas não
fazia a menor ideia do porque.
Estamos
vivendo, nós, os pais desta nova geração, uma incrível quebra de paradigmas:
convivemos, orientamos e temos a responsabilidade sobre crianças que não
aceitam mais, cabisbaixas, como faziam seus pais e avós, o “porque é assim e
pronto”, “porque eu mando”, ou similares. E sinceramente? Que bom! Porque
podemos fazer melhor do que isso, não acham?
Os
educadores acostumados à educação tradicional tremem diante das novas
alternativas, que quebram com a hierarquia escolar e elevam o aluno à condição
de protagonista de seu aprendizado, ao invés de enxergá-lo como mero
receptáculo de conteúdo. E eu os compreendo: mudar não é fácil. Exige de
professores, pais, alunos – exige de todos, em coragem e comprometimento
verdadeiro com esta nova realidade.
Fala-se
muito sobre a famigerada “indisciplina” nas escolas. Culpa, na teoria, dos
pais, que não estariam exercendo sua autoridade, o que confere aos alunos a
crença de que não existem limites, e de que podem fazer tudo o que querem.
Discordo, com veemência. Em primeiro lugar, porque respeitar as crianças em sua
autonomia e dar-lhes liberdade para exercerem sua individualidade, respeitar
seus tempos, curiosidades e desejos, e conceder-lhe voz ativa na discussão dos
caminhos a serem trilhados, na vida como na escola, não tem nada a ver com
“deixar fazer o que quiser”. Deixar fazer o que quiser poderia ser relacionado
a uma tremenda ‘preguiça educacional': não quero debater, não quero refletir,
não quero gastar meu tempo com qualquer tipo de orientação, portanto deixo
‘fazer o que quer’. Conceder liberdade, autonomia e voz à criança e ao aluno,
muito ao contrário, é trabalhosíssimo: envolve a disposição da escuta, que
valoriza o que a criança/aluno tem a dizer; envolve o respeito aos tempos e
necessidades individuais, o que nos obriga a constantemente reelaborar e
repensar caminhos e possibilidades, de maneira que o aprendizado e as
caminhadas da vida sejam proveitosos para todos; envolve abrir mão da
confortável hierarquia que nos concede o direito de vociferar “porque sim”, e
obriga a pensar a respeito das orientações, a buscar porquês, a compreender a
que serve tomar esta ou aquela direção. Entre exercer a autoridade do ‘porque
sim’, deixar a criança fazer o que quer, ou educar para a autonomia, não tenho
a menor dúvida de que esta última opção será, de longe, a mais trabalhosa.
Além
do mais, se observarmos cuidadosamente perceberemos que a tal da “indisciplina”
é, no mais das vezes, um pedido de socorro: “olhem-me! reparem naquilo que me é
particular, compreendam minha forma de ver o mundo e ajudem-me a compreender a
forma de ver o mundo daqueles que estão ao meu redor”.
Lembro
de uma reunião na escola das minhas filhas – uma escola democrática, uma
iniciativa totalmente inovadora e de vanguarda – em que, entre pais, alunos e
educadores, comentávamos sobre esta dificuldade: como educar uma nova geração
para uma liberdade que nós mesmos desconhecemos, para a qual nós mesmos não
fomos preparados? Nossa geração não foi educada para a autonomia, para a
igualdade, para o respeito às diferenças. Muito ao contrário: uns mais, outros
menos, mas em algum grau fomos todos educados para obedecer, para respeitar as
organizações hierárquicas, para encaixar-nos no padrão determinado, para
deixar-nos colocar em escaninhos etiquetados. Precisamos, portanto, não apenar
ensiná-los a serem livres e autônomos, mas aprender também a sermos, nós
mesmos, capazes de vestir esta mesma liberdade, esta mesma autonomia.
Isso
talvez seja o mais bonito das novas iniciativas da educação: não há mestres,
não há aprendizes – ou melhor, há mestres que são também aprendizes, há
aprendizes que são também mestres, e os papéis se misturam e se confundem a
todo momento, em uma experiência fluida e contínua em que todos ensinam e
aprendem juntos, em uma construção coletiva de novas possibilidades.
Só
alcançaremos uma nova educação, libertária de fato, que realmente prepare para
a autonomia, quando abrirmos mão dessa visão limitada que, inacreditavelmente,
ainda é tão comum no século XXI: a de que a criança é um ser que necessita ser
dominado, domado, domesticado, adaptado a aquilo que esperamos dela. Não, não
é. A criança é um ser único, como somos todos. A grande diferença é que nós nos
acostumamos a ser desrespeitados em nossa unicidade – ela, ainda não.
Se
ela aprenderá conosco a se adaptar, ou se nós aprenderemos com ela a nos
libertar, é o que nos cabe decidir. E essa decisão urge, mais do que nunca.
22
ago 2014
Foto
Mamífera: Renata Penna ©