A sedução que ronda o jardim da infância
Maria Helena Masquetti*
Olhar de longe
uma criança imersa em seu mundo lúdico, conversando com mil personagens,
gesticulando, encenando e praticamente materializando sua imaginação, tanto
pode fazer rir como chorar. Rir pelo fascínio da cena e, junto com isso, chorar
pela sedução consumista que ronda esse mundo mágico. O que pode ser mais real
que ver, ouvir e sentir na pele a emoção de uma história, uma música ou uma
invenção sem similares brotadas da própria capacidade imaginativa? As crianças
têm esse poder, que sobreviverá nelas desde que o marketing deixe de
assediá-las.
Brincar é a
linguagem das crianças e é brincando que elas constroem sua identidade,
aprendem a se relacionar, identificam seus desejos genuínos e exercitam
comportamentos futuros. Porém, convencidas por tantas mensagens comerciais, em
lugar de expressar desejos genuinamente seus, milhares (e, por que não,
milhões) de crianças seguem pedindo por objetos, muitas vezes na mesma cor, marca
e tamanho, sem entenderem que tal desejo não é realmente delas. Será injusto
esperar que, mais tarde, crianças assim manipuladas tenham plena convicção
daquilo que pensam, sentem e querem.
Por isso, é tão
importante assegurar que as crianças brinquem livres das ações do marketing,
que vêm abreviando a infância para que elas ingressem o quanto antes no mercado
do consumo. Pela lógica do comércio, a infância também é mágica, infelizmente
não pela poesia, mas pelo lucro fácil que verte da exploração da credulidade e
do fantasiar infantil. Não bastasse os brinquedos e produtos serem pensados e
confeccionados por adultos, pesa o fato de a publicidade falar diretamente com
os pequenos.
Todo mundo
concorda que uma criança não pode assinar um contrato, matricular-se numa
escola, adquirir um bem ou praticar quaisquer atos da vida civil por ser
considerada incapaz perante a lei. Porém, ao ser abordada diretamente como
consumidora pelas mensagens comerciais, essa determinação é ignorada, embora a
legislação já considere abusiva a publicidade para as crianças. Por sua vez,
muitos pais acabam se ausentando sempre na busca de mais recursos para suprir
os incansáveis pedidos dos filhos quando, ao contrário disso, sua presença é
justamente do que as crianças precisam para se sentirem preenchidas de amor, em
lugar de objetos.
Quanto mais
longe do brincar espontâneo e do contato dos que realmente querem o melhor para
elas, maior será a vulnerabilidade das crianças à sedução do marketing que as
espreita e aborda ininterruptamente. Onde quer que respire uma criança, um
anúncio estará lá por meio das telas, revistas, cinemas, promoções, jogos,
personagens, materiais escolares e de tantas celebridades que se aproveitam da
admiração que lhes é devotada pelas crianças para estimulá-las a comprar os
produtos que levam seus nomes e marcas. Produtos esses, em sua maioria,
referentes ao mundo adulto – desde laptops, sandálias de salto, roupas sensuais
e maquiagens até cremes antienvelhecimento com indicação de uso a partir dos 3
anos. Como chegamos a esse ponto? Só mesmo a ganância pode explicar.
Tomara que
todos os pais, responsáveis, educadores e cuidadores se deem conta de que a
solução para preservar a infância está literalmente embaixo de seus narizes.
Está nas palavras que, ao saírem de suas bocas carregadas da legitimidade e
autoridade natural, preencherão suas crianças com limites que as ajudarão a
entender que não se pode ter tudo, com a certeza de serem amadas, com histórias
que as levarão a viajar por mundos que nem os mais avançados parques temáticos
poderiam simular e com as denúncias que podem fazer sobre publicidades
abusivas. Tomara também que o marketing tenha o insight mais brilhante do
mundo, entendendo que explorar a riqueza da infância em favor do lucro é tão
destrutivo e incoerente quando seria trocar por dinheiro o ar que respiramos.
* Maria Helena Masquetti, especializada
em Psicoterapia Breve, exerceu a função de redatora publicitária durante 12
anos e hoje é psicóloga do Instituto Alana.
Reproduzido de Gazeta
do Povo
09 fev 2016