É preciso ouvir as crianças
Entrevista com Manuel Sarmento
Agosto/2011
Sociólogo da
infância aponta a necessidade de percebê-las com um grupo com ideias próprias,
distinto dos demais, e diferenciado entre os indivíduos que o compõem.
A sociologia
da infância se propõe a construir a primeira fase da vida do ser humano livre
de interpretações nas quais as crianças se desenvolvem independentemente da
construção social, das suas condições de existência e das representações e
imagens historicamente construídas sobre e para elas. Trata-se de uma área
nova, recém-desbravada por pesquisadores de todo o mundo. Manuel Jacinto
Sarmento, diretor do Centro de Educação da Universidade do Minho, em Portugal,
é um deles. "Os estudos têm dito, há 20 anos, de maneira enfática, que os
pequenos necessitam ser conhecidos em sua verdadeira realidade."
Durante
visita ao Brasil para uma série de encontros, eventos e visitas, Sarmento
concedeu entrevista à repórter Cristiane Marangon logo após sua
exposição em um congresso de educação infantil realizado em Maceió (AL).
"Tenho aprendido muito com os brasileiros e com suas experiências
concretas de vida. Há muita troca de conhecimento e esses intercâmbios também
são de muita aprendizagem."
É possível definir um tipo de
infância?
Essa questão
é controversa e muito debatida por diferentes autores. Alguns dizem que é
necessário falar da infância no singular para tratá-la como categoria social.
Os sociólogos que trabalham com essa visão se preocupam com indicadores sociais
de demografia ou de economia e também de natureza simbólica. Na demografia,
procura-se perceber de que modo o grupo infantil estabelece relações de
porcentagem com outros agrupamentos populacionais e quais são os diferentes
espaços que ocupam na sociedade. Do ponto de vista econômico, entende-se que as
crianças, com exceção daquelas vinculadas ao trabalho infantil, se caracterizam
por não participar da economia e, por isso, não são importantes como classe
econômica. No simbólico, as concessões que existem traduzem-se nos modos de
agir dos adultos em relação às crianças. Há também os sociólogos que trabalham
na base interpretativa ou crítica, que tendem a encontrar e pluralizar as
formas de infância. Consideram que a ação caracteriza a categoria pelos desempenhos
coletivos e individuais, que são atravessados pelos gêneros, pelas classes
sociais, pelas etnias, pelas diferenças que dizem respeito ao espaço no mundo e
tendem a enfatizar que existem várias infâncias.
E qual é o seu entendimento sobre a
infância?
Não é
possível dizer que há uma única infância. Necessitamos articular as concepções
para perceber o que é comum a todas as crianças. Na minha opinião, ela deve ser
percebida como um grupo geracional, distinto do mundo adulto. As crianças são
diferentes umas das outras e, nessa diversidade, há fatores sociais acentuados,
que não são puramente individuais. Por exemplo, há elementos comuns por uma
parte de tempo de suas vidas, pois vivem sob a guarda de responsáveis, já que
não são capazes de ficarem sozinhas. No entanto, isso mudou ao longo do tempo.
A independência delas tem sido retardada em relação ao que ocorria há 20 anos.
A entrada no mercado de trabalho se dava mais cedo e, por isso, ficavam longe
da guarda de seus pais precocemente.
Como a infância tem sido interpretada
pelos adultos?
Vivemos em um
tempo em que há uma coincidência de várias concepções - desde que a criança
deve ser submetida a processos rigorosos de controle de autoridade até a que
ela, sendo um ser de direito, precisa ser respeitada na sua autonomia. Essas
representações são bem diferenciadas e acompanham a história da humanidade nos
últimos 250 anos. É possível dizer que há dois polos. Um deles é que a criança
é um ser irracional e imoral e, por isso, deve ser submetida a processos de
racionalização e moralização, que acontecem pela educação, seja familiar ou
escolar. A outra concepção é que a criança é naturalmente boa e que, para
educá-la, basta sustentar e apoiar seu desenvolvimento. Vale ressaltar que
essas compreensões são produzidas, principalmente, na sociedade ocidental e
disseminadas pelo mundo. É preciso que todos saibam que existem infâncias
diferentes. No Brasil, por exemplo, há comunidades indígenas em que só se deixa
de ser criança ao se tornar pai ou mãe.
Como o docente pode chegar mais perto
do que as crianças pensam para estabelecer uma comunicação mais adequada?
A escola foi
edificada com base em um modelo cognitivo, ou seja, um entendimento de homem,
de sociedade, de cultura e de criança, que sempre formou os educadores. A
instituição escolar é pensada como um lugar de transmissão de cultura para um
sujeito que está inserido na sociedade e em processo de transição. A passagem
pela escola serve para que isso seja garantido. Ela está centrada na
comunicação, portanto, no poder do adulto sobre a criança, pois se supõe que os
pequenos são seres em desenvolvimento e passam por várias etapas. No entanto,
os estudos da criança têm dito, há 20 anos, de maneira muito enfática, que elas
necessitam ser conhecidas em sua verdadeira realidade. A própria psicologia tem
desmentido as etapas de desenvolvimento concluídas por Jean Piaget,
consideradas adultocêntricas, pois o desenvolvimento humano é feito em
contextos sociais e culturais. Não há linearidade e nem teleologia que
independam de contexto e também de circunstância em que se encontram os
pequenos. Precisamos trabalhar em uma renovação na concepção que forma os
professores, pois eles decidem o trabalho nas escolas.
Quais são os danos para as crianças
mais afastadas culturalmente da escola?
Elas reagem
desenvolvendo estratégias de sobrevivência, como abandonar a escola
precocemente e procurar sentido para a vida fora desse espaço. Isso nada mais é
que uma atitude de resistência. O indivíduo encontra satisfação e referência
pessoal no contato com amigos e vizinhos e, por isso, passa a criar aspirações
e expectativas compatíveis com essas motivações. No entanto, é importante
destacar que há benefícios mesmo quando há danos, pois essas crianças encontram
duas coisas fundamentais na escola: um espaço público e de convivência. No
primeiro caso, elas são reconhecidas como membros de uma sociedade, o que é
simbolicamente importante. No segundo, é fundamental conviver com outras
crianças e poder desenvolver as culturas de pares. É claro que pode haver
outros benefícios, mas isso depende da capacidade que a escola tem de gerir sua
autonomia e de ir ao encontro dos que estão mais afastados de sua cultura,
promovendo relações, produzindo seu conhecimento a partir do que se percebe e,
nessas circunstâncias, poder lidar e gerir mais adequadamente o abandono, se
ele acontecer.
O senhor defende que as crianças
participem de maneira ativa na vida social. De que maneira?
A
participação da criança na sociedade é um elemento novo que está expresso no
documento A Convenção sobre os Direitos da Criança, das Nações Unidas, de 1989,
em que se consagrou a ideia de que a criança não pode ser ignorada em sua
opinião sobre os aspectos que lhe dizem respeito, atendendo à capacidade que
ela tem de exprimir a própria opinião. Sua participação social significa que o
conhecimento que ela tem deve ter voz, deve ser auscultada e deve ter efeito,
ou seja, influenciar seu modo de vida. Atualmente há um movimento nas cidades
amigas da criança, cujo eixo central é ouvi-las na formulação de políticas
públicas no que diz respeito ao mobiliário, ao equipamento, à mobilidade, à
programação de atividades etc. Elas deveriam ser ouvidas também politicamente e
isso não tem a ver com o fato de ter direito a voto, ainda que não seja uma
ideia não instrumentada. Isso acontece em alguns grupos sociais. Em uma
comunidade indígena brasileira, por exemplo, sempre que há um assunto
importante, todos se reúnem em assembleia e têm direito de exprimir opinião. A
decisão cabe aos mais velhos, mas sempre depois de ouvir a todos. Inclusive, as
mulheres grávidas podem falar duas vezes porque é considerado o filho que se
desenvolve no seu ventre. Isso é a ruptura com um modelo mental do nosso tempo
em que a criança não tem participação política porque não fala.
Como funcionaria na prática?
Trata-se de
criar dispositivos institucionais para auscultação das vozes das crianças por
meio de inquéritos de opinião, caixas de sugestões, linhas de comunicação -
seja telefônica ou pela internet - e realização de processos de audição. Isso
pode, em alguns casos, nomear representantes dos grupos infantis organizados
com seus conselhos para serem ouvidos. É um modelo que reproduz as democracias
ocidentais. Essa atitude necessita ser permanente, não pode se esgotar no dia a
dia e precisa de dimensão mais profunda, seja na escola, na cidade ou na
família. Há vários municípios que desenvolvem atividades e projetos assim. Os
mais conhecidos são os de algumas cidades italianas.
Muitos produtos direcionados ao
público infantil são feitos por adultos e, inclusive, carregam os valores do
mundo adulto. De que maneira isso influencia a vida das crianças?
Na cultura
industrial, em que os conteúdos e os produtos são feitos pelos adultos para o
consumo infantil, nunca se deixa de reproduzir os estereótipos do mundo adulto.
Walt Disney, por exemplo, tem uma produção cultural própria de grande difusão
com conceitos e valores identificados como patriarcais, paternalistas,
conservadores, que revelam padrões de uma família burguesa ocidental em que
raras vezes se encontram modelos diferentes dos brancos anglo-saxônicos. Essas
produções também são formas culturais influentes e com muita capacidade de atração.
Isso se deve ao fato de elas jogarem na dimensão da ficcionalidade, que é
importante na cultura da infância, ou seja, na transposição imaginária do real
e da ludicidade. Alguns estudos têm mostrado que há uma grande homologia entre
os movimentos imaginários dos adultos e os das crianças na produção da
indústria cultural infantil e que essa relação vai acompanhando o fluxo dos
tempos.
O senhor afirma em seus estudos que as
crianças são produtoras de cultura. Como é possível, se elas são influenciadas pelos
adultos?
As crianças
não estão sob a tutela dos adultos o tempo todo. Elas sofrem processos de
socialização na relação com os pais, as famílias, os vizinhos e os professores,
mas também se envolvem socialmente com seus pares. Nas brincadeiras e nos jogos,
seja em tempo real ou virtual. Isso é comum e importante. Mesmo atravessadas
pelos adultos, elas produzem culturas próprias. É comum atribuir ao adulto o
título de produtor cultural, mas é importante ressaltar que eles também são
atravessados pelas culturas que herdaram. Não há diferença sobre a condição do
adulto como produtor cultural e a da criança. O pintor Pablo Picasso, por
exemplo, foi um produtor cultural revolucionário, que alterou muito a cultura
ocidental e fez muitas relações com as quais convivia. Produção cultural, mesmo
quando genial, é sempre feita na relação. É importante que as crianças produzam
a própria cultura nas condições que têm para fazer isso.
Reproduzido
de Revista
Educação UOL
Agosto 2011
Leia também:
"Novas perspectivas para o estudo da infância" por Teresa Cristina Rego, em Revista Educação, clicando aqui.
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