Carta aberta ao mestre Manoel
de Barros
Querido Manoel,
não sei como começar esta carta… ela é uma tentativa de amarrar o tempo no
poste. Como a gente amarra o tempo no poste, mestre Manoel? Esta carta é um
vareio da imaginação, bem como o vareio que o senhor teve aos sete anos, quando
tentou pegar na bunda do vento. Amarrar o tempo no poste é como pegar na bunda
do vento?
Soube que o
senhor está internado, temporariamente impossibilitado de pendurar bentevis no
sol. O que o senhor tem que barra os bentevis? Há uma pergunta que dança
em mim: os anos pesam o peso da pedra ou do algodão ou da pedra e do
algodão ao mesmo tempo?
Escrevo-lhe
esta carta para agradecê-lo pelo que fez por mim sem nem saber que fez.
Pois foi com o senhor que se quintuplicou em meus voos a importância de
apalpar as intimidades do mundo.
Foi com o
senhor que descobri a esticadeza de horizontes e o carregamento de água na
peneira. {Minha mãe até hoje reclama por eu passar todos os dias carregando
água na peneira. Abaixo há uma foto minha com a peneira em que peneireio nascentes
desde menininho.}
Foi com o
senhor que aprendi a sapiência do bocó. Que aprendi a ser endivinado
pelo orvalho e desaprendido pelas horas do dia. Que aprendi que dá para pegar
na voz de um peixe. {Estava numa loja de papéis, e a pessoa que me atendeu disse
que o filho dela, de uns 6 anos, gosta de poesia. Daí peguei uma caneta na hora
e lancei sobre o papel um presente ao rapaz, uma peraltagem manoeleira: “As
coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis. Elas desejam ser
olhadas de azul”.}
Foi com o
senhor que vi cenas nunca antes imaginadas nem no império brinquedeiro da
minha infanciência. Com o senhor andei por um rio que cortava a tarde pelo
meio. De azul, o senhor me mostrou outonos mantidos por cigarras e lamas
fascinando as borboletas. Me mostrou um homem quase-árvore, que guardava um
encolhedor de rios e um abridor de amanhecer {jamais vou me esquecer de como o
abridor de amanhecer auroreia a terra}. O senhor me ensinou a apalpar os
perfumes do sol. Me disse que as coisas que não existem são mais bonitas. E não
entendi. E o senhor me deu um desafio: “ao voltar para a casa, fotografe o
silêncio”. E tentei, tentei, mas não consegui sacar nenhuma imagenzinha do
silêncio. E voltei para uma outra conversa. E perguntei como fotografar o que eu
não via. E o senhor não me explicou, só me levou para perto de uma árvore em
que pássaros gorjeavam. Que cena fecundante, que bonitezaria! E o senhor me
perguntou: “por que o gorjeio é mais bonito do que o canto?”. Não soube
responder, estava eu em estado de voz perdida, penetrado pelos gorjeios. Passou
um tempo e o senhor continuou: “gorjeio é mais bonito do que canto porque nele
se inclui a sedução. É quando a pássara está enamorada que ela gorjeia”. E o
senhor pediu para eu olhar a árvore com atenção. “As árvores ficam loucas se
estão gorjeadas”, disse. Sim, foi a primeira vez que vi o delírio de uma
árvore. E foi como um balde de água cheio de fogos de artifício cremosos se
derramando sobre meu olhar… Aí fotografei o silêncio do delírio da árvore
gorjeada.
O senhor já me
convidou para tantos festejos linguajeiros que nem há como agradecimensar
tantas entradas no reino da poesia. O senhor é sábio em celebrar vazios – e
sabe bem como chamar outros para partilhar sua fervura. O senhor convida homens
sozinhos como pentes, que têm vozes em que nascem árvores. O senhor convida
aves que sonham pelo pescoço, macacos que gorjeiam, lagartixas com odor verde,
caramujos-flores, corós transparentes, ciscos feitos de gravetos, areia,
grampos e cuspes de aves, mulheres de 7 peitos, moscas que se dependuram na
beira de ralos, córregos, formigas ajoelhadas em pedras, baratas que passeiam
nas formas de bolo, chuvas vestidas de sóis, meninos que veem a cor das vogais,
sapos que sabem divinamentos, caracóis que não gosmam em latas, latas nuas e
todos os tipos de pessoas com cabeças apinhadas de parafusos que farfalham.
Mestre Manoel,
vidente das coisas trocadas, ousadioso dos instintos primevos, o senhor é mesmo
o apogeu do chão. É quem monumentou as miudezas e também as formigas espremidas
pela neblina. E o tibun das crianças. E a cobra de vidro que dá a volta por
trás da sua casa.
O escrevimento
dessa carta me deu vontade de rasgar inteirinhinha a fantasia da razão, está na
cara que todos os caminhos levam à ignorância. Tenho gostos pela vadiagem com
letras… Tenho que reaprender a errar a língua… E compartilho uma novidade: vou
criar peixes no bolso, está decidido. Depois o senhor me manda algumas
sugestões sobre cuidadoria de cardumes bolsais? Quem sabe dá para criar um Tratado
Geral das Criações no Bolso.
Me despeço…
Enquanto me despeço, remexo, com um pedacinho de arame, o poço das lembranças
manoeleiras que guardo em mim. Os ventos levam-me para longe, os ventos lhe
levam para longe… Manoel, Manoel, Manoel, Manoel, Manoel, Manoel, Manoel,
Manoel, Manoel, Manoel, Manoel, Manoel, Manoel, Manoel, Manoel, Manoel…
repetir, repetir, repetir… até ficar diferente, até contrair visão fontana.
Que uma chuva
de pingos de sol leves caiam feito mel sobre o senhor. Já é hora de eu tomar meu
banho no orvalho da manhã.
Tibun.
André Gravatá
Obs.: Mestre
Manoel, não foi possível amarrar o tempo no poste… Minutos antes de eu
partilhar a carta que escrevi para o senhor, escrita com a água da fonte que
sai dos olhos, o senhor voou fora da asa. Agradecimenso por pintar tantos
azuis no mundo. Que o fim lhe olhe de azul também. Que o fim lhe olhe de azul.
Manoel, Manoel, Manoel…
Reproduzido de André
Gravatá
13 nov 2014
Comentário de Paqonawta:
Há séculos que
eu não era envolvido por gotas tão iridescentes nos tibuns da vida. Correndo e
cruzando as pernas no ar, me jogando todo encolhido nesse mar de sentimentos e
pensamentos e, depois, abrindo o corpo inteiro e flutuando no multicolorido
revoado dessa carta de amor e gratidão... Sorri, co-movido nessa e-ternuridade!
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